sábado, 24 de maio de 2014

Por um Projeto Libertário de Sexualidade


Anteontem à noite, assisti um programa evangélico na televisão chamado (ironicamente) de “Sem Tabus”. O programa era uma coleção de tabus e normas conservadoras sobre a sexualidade voltado especialmente para jovens, cheio de pseudo-ciência e pretensa racionalidade que confirmaria o “projeto de Deus” para a sexualidade: monogâmica, marital e heterossexual.

Foi uma experiência interessante, mas, por mais que eu pudesse me envolver em escrever uma resposta às asneiras e incoerências do programa, parei pra pensar numa coisa mais importante... A direita e os conservadores em geral têm um programa muito organizado para a sexualidade. Os libertários não. É fácil saber claramente o que são os valores que sustentam a moralidade conservadora – mas a moral libertária é invisibilizada e parcamente existente. É sobre isso que pretendo me debruçar nesse post.
Primeiramente, não podemos dizer que não exista um projeto libertário para a sexualidade de maneira geral – ele existe, mas é construído de maneira pouco consistente e difusa.

Por um lado, as esquerdas que não reproduzem a ordem sexual (ou seja, estão excluídas as esquerdas stalinistas :P) preferem não tocar no assunto do sexo, tratando no máximo da liberação LGBT (quando muito). O Coletivo Lênin (com o qual tenho diversas discordâncias em uma série de temas, inclusive no da sexualidade) soltou, há alguns anos, atrás um texto sobre o tema intitulado “Os Comunistas e a Questão Sexual” em que pontuam corretamente que a esquerda pecou e peca por não tratar da questão do sexo, por considerá-lo uma questão desprezível ou que não deve ser tratada pela política. Nada mais que a verdade. Previram no texto – imagino eu que com razão – que alguns militantes socialistas/comunistas poderiam mesmo rir do texto. Claro que o material não tinha nenhum contexto com o debate atual das esquerdas e muito menos o CL tinha qualquer capacidade de colocar esse debate de maneira ampliada para o conjunto da esquerda e acabou por cair no completo ostracismo. A conseqüência de tudo isso é que o tema da sexualidade nas esquerdas fica calado, esquecido e desprezado – fazendo a direita, conservadora, ganhar sempre o debate que não tem opositores.



Por outro lado, aqueles que se dispõem a discutir o tema e levantar questões sobre isso, mobilizar, etc. (especialmente os atuais movimentos feministas da internet) acabam muitas vezes (não sempre) num outro problema: o discurso pós-moderno e liberal do Laissez Faire, Laissez Passer, o discurso do “faço o que eu quiser por que o corpo é meu”. Isso é parcialmente correto: claro que cada um deve ser o dono absoluto de seu próprio corpo – e, nesse sentido, o que dizem esses setores é apropriado –, mas não só isso é vago e não dá nenhum norte de referência para quem busca respostas para suas questões sexuais, como nem tudo que se faz com o corpo é recomendável (tanto da perspectiva de que o corpo existe em relação com outros e não deve prejudicá-los sem razão, quanto da perspectiva de que a liberdade não é dar validade a tudo que se faz, mas é um instrumento para permitir aos seres humanos sua expansão e realização).



O que acontece é que o sexo é um tema cheio de questões de ordem política, social e cultural, em que há muitas pessoas procurando respostas e tudo que encontram são proclamações vagas (e muitas vezes vazias) de um lado e um conjunto estruturado, detalhado e desenvolvido de noções, fatos, mentiras, mitos e, acima de tudo, respostas. As pessoas devem sim pensar por conta própria, mas só se pensa por conta própria quando existem opções sobre as quais pensar... quando só se apresenta de fato uma opção, a realidade é que o pensamento fica travado e acaba por assimilar a ideologia estruturada e “fundamentada” que se apresenta a ele. É assim que as massas funcionam – e fingir que não é dessa maneira não nos tem levado a lugar nenhum.

É nossa tarefa, portanto, disputar o espaço aberto na questão sexual.

O projeto conservador para a sexualidade foi atacado por movimentos mais claros em suas propostas (especialmente os hippies e o movimento feminista antigo) e sofreu duras derrotas, abrindo espaço para várias conquistas morais que tivemos nos últimos anos – direito ao divórcio e o recasamento, direito ao aborto (em alguns países), visibilidade e respeito (ainda que limitado) aos LGBT, liberdade (parcial) para o sexo casual, o surgimento do “ficar”, entre muitas outras coisas.

De um lado, os movimentos desapareceram ou tiveram outras prioridades, e, de outro, vivemos no capitalismo (egoísta, competitivo, predatório, que objetifica e transforma em mercadoria a maioria das coisas). Por essas duas causas, a questão da sexualidade ficou abandonada e foi então transformada na barbárie que encontramos na realidade de hoje: machistas manipulando e sacaneando mulheres despreparadas para lidar com suas próprias sexualidades; relacionamentos enlouquecendo pelas expectativas irreais contraditórias entre si e discrepantes umas das outras, de parceiros carentes e solitários; a objetificação geral do sexo e do amor, e a transformação da visão sobre os outros na visão de um consumidor de mercadorias que estão a serviço de seu próprio prazer; a disseminação de DSTs; o alto número de gravidezes indesejadas, especialmente em adolescentes pobres...

Este panorama resumido é expressão da desagregação social promovida pelo capitalismo mundial desenvolvido e todas as suas tendências. Isso é o resultado da ausência, por anos, de uma luta (que é política) por uma sexualidade que esteja fundada em outros parâmetros – em vez da desagregação, a agregação; ao invés da objetificação, o respeito; ao invés do egoísmo, o altruísmo; ao invés da cegueira, a visão; ao invés da ignorância, o conhecimento...

Obviamente que não serei eu aqui, em um post num blog de baixíssimo alcance, que vou escrever, sentando em minha poltrona e ouvindo Cream, o programa completo para a sexualidade! Até por que, não é minha tarefa elaborá-lo: muito dele já existe espalhado por aí e desorganizado nas ações e propostas de diversos grupos libertários. O que posso fazer é levantar para os meus leitores a necessidade de se pensar esse projeto libertário de sexualidade – e esboçá-lo aqui.

Um projeto como esse precisa ser baseado em alguns princípios:

Primeiro, o corpo somos nós. Nós escolhemos o quanto queremos viver com ele ou não, o quanto queremos ser prudentes – mas a prudência deve ter um papel importante na elaboração de uma forma de lidar com o mundo e o corpo. Prudência para fazer sexo seguro, usando preservativos, tomando pílula (atualmente só as mulheres, mas assim que sair uma pílula masculina, os homens também); prudência para realizar fantasias sem prejudicar sua própria vida pela exposição ao mundo machista e conservador no qual estamos imersos; prudência para saber selecionar quem são os que podem nos causar danos físicos ou psicológicos (especialmente as mulheres com relação aos homens, mas não só).

Segundo, o outro não é mero objeto de nosso desejo. Entender o outro como sujeito de seu próprio prazer e como companheirx da nossa busca por prazer, satisfação e felicidade, e não como mero instrumento. Ou seja, respeitar os desejos e limitações da sexualidade do outro, respeitar seus gostos e taras como formas legítimas de sua busca por satisfação sexual – e não como “maluquices” ou “frescuras”. É fundamental que se pense nisso com TODX e qualquer parceirx sexual, mesmo no sexo casual.

Terceiro, entender que a busca por satisfação sexual é uma necessidade humana para seu próprio desenvolvimento enquanto ser humano. Ou seja, estimular a auto-descoberta pela masturbação ou quaisquer outros meios; estimular a experiência de coisas novas; estimular o acúmulo de experiências (afinal, como qualquer coisa, o sexo se aprende, também, assim); estimular a criatividade sexual; e, muito importante, entender que a sexualidade é um caminho individual que deve ser traçado por cada um de seu próprio modo – e não para satisfazer as expectativas de umx parceirx, por exemplo.

Quarto, a sexualidade não é só um fenômeno mecânico – ela também é um fenômeno químico, psicológico e social. Primeiro, sexo faz bem e possibilita a criação de vínculos, mesmo que no sexo casual. Além disso, a energia sexual e a satisfação sexual podem ser canalizadas para diversas atividades, propiciando uma vida mais completa. Mais que isso, o desenvolvimento sexual dos outros é parte do nosso próprio. Por mais que esse último seja uma verdade em todos os aspectos da vida, no sexo ele é mais evidente – sexo só pode ser feito com mais de uma pessoa; ele pode ser naturalmente agregador! E temos que transformá-lo em algo assim, agregador. Temos que ensinar sexo, aprender sexo, desenvolver sexo, auxiliar sexo. Faz bem, é gostoso e nos permite desenvolver outras áreas da vida.

Em suma, tratar a sexualidade como uma área importante e potencialmente positiva da vida da humanidade.

Isso tudo implica em algumas coisas a mais: sermos irremediavelmente a favor dos direitos LGBT, a favor do poliamor, a favor do sexo casual responsável, a favor do sexo seguro, a favor da criação e ampliação do acesso a instrumentos que desenvolvam o sexo, a favor da liberação sexual da mulher, a favor da conscientização da sexualidade do homem, a favor da educação sexual ampla, a favor da naturalização do sexo, a favor da entrada do assunto nos lares (onde pais possam falar tranquilamente de sexo com os filhos e estes possam ser plenamente orientados sem serem entulhados de tabus e restrições infundadas); a favor de campanhas de conscientização sexual; a favor da distribuição de preservativos de maneira gratuita; contra a estigmatização do exercício da sexualidade (inclusive do BDSM e outras preferências sexuais); contra a noção de gênero; contra as políticas de abstinência sexual; contra o conservadorismo sexual limitador e castrador.



Claro que muitas coisas podem ter ficado de lado nesse meu esboço. Claro, também, que esse esforço que estou fazendo (de unificar as discussões sobre sexualidade em um único projeto libertário) não é uma inovação minha, mas deve ter sido feita por várias pessoas antes de mim – e será feita por muitas pessoas depois. Se você que está lendo esse texto, conhecer de alguma coisa parecida, me passe! Vale livro, blog, tirinha, o que for!

É claro também que nunca teremos um único projeto libertário consensual entre todos os libertários – haverá diferenças e discordâncias, e isso é evidente. Mas o importante é que fundemos princípios, unifiquemos bandeiras, façamos campanhas, ou seja, desenhemos as linhas principais desse programa para o sexo. E, acima de tudo, que nos unifiquemos para combater os conservadores no espaço público, especialmente os mais perigosos – os conservadores religiosos!


Até mais, pessoal! Vontade e Sabedoria na Guerra!

Um comentário:

  1. Achei o texto muito relevante para pensarmos no papel que, nós, libertários, damos ao sexo em nossas vidas. Porque ser libertário não significa ser irresponsável nem conosco nem com nossxs parceirxs. E não digo responsabilidade só no âmbito da precaução de DSTs não, responsabilidade também com o nosso desejo (estamos fazendo o que queremos ou apenas algo para agrader x(s) parceirx(s), estamos tratando x(s) nossx(s) parceirx(s) sexuais como meros objetos de nosso prazer ou como pessoas com desejos, vontades, sentimentos e limitações individuais?

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