Muita gente poli reclama do preconceito, mas nem sempre tem
noção clara do quão abrangente a opressão que sofremos pode ser. Esse texto é
uma continuação deste aqui (ele é apropriado para você que tem dúvida sobre
se a polifobia é mesmo uma opressão ou não)
Neste texto, vou me ater às características mais comuns de
se ver da polifobia (o que, com frequência, envolverá outras formas de opressão
com as quais estou familiarizado). Claro que esse não é e nem pretende ser um
texto final sobre o assunto, mas, mais uma base para estudos futuros.
Vale localizar aqui que o fato de que a polifobia se combina
com outras formas de opressão de maneira nenhuma reduz seu "status"
como opressão: toda opressão se combina com outras. A mulher negra sofre uma
combinação de machismo com racismo e isso não diminui a importância de se
entender o racismo nem o machismo.
************ Parte Mais Teórica e Abstrata (se não se interessar, pode pular)
Bom, eu diria que as opressões se dividem em dois grupos: as
estruturantes e as desviantes. Essa classificação é minha, que fique claro, mas
a acho útil para se elaborar sobre o tema.
As opressões estruturantes (não confundir com estruturais,
pois toda opressão é estrutural) são aquelas em que o indivíduo é enquadrado,
de nascença, num grupo social por alguma característica natural, biológica, que
determina que ele deve ter uma formação específica e um lugar específico na
sociedade. Nesse perfil se enquadram o machismo e o racismo, por exemplo. É
claro que, caso o indivíduo desvie de seu papel social, ele sofrerá
preconceitos específicos - mas a questão é que, se ele não se desencaixar, vai
sofrer do mesmo jeito, por que o grupo social do qual ele faz parte (mulher,
negro, etc) é desprivilegiado.
As opressões desviantes são aquelas em que o grupo social ao
qual a pessoa pertença (seja de natureza biológica ou socio-comportamental)
desvia da norma esperada para o grupo social que aquela pessoa deveria
pertencer, a enquadrando num grupo que, segundo a ordem social, não deveria
existir. Esse é o caso de polis e LGBT. Para a sociedade, nós não deveríamos
existir, pois somos a negação de estruturas fundamentais da sociedade (o papel
do homem e da mulher no caso dos LGBT, e a monogamia no caso dos polis).
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Entendido isso, perguntamos, como é a polifobia?
Primeiro, Partamos do básico: segundo a sociedade, nós não
só não deveríamos existir, como, para muitos, não existimos.
Por isso, muitas vezes, nossa orientação ou opção poli é
tratada como "uma fase", " coisa de jovem" ou algo que
praticamos por que "não encontramos o amor verdadeiro" ou " não
amamos de verdade". Às vezes, a existência de ciúmes da nossa parte é
tratada como se fosse uma evidência de que não somos polis "de
verdade" e que, como "todo mundo que ama sente ciúme",
estaríamos nos enganado vivendo dessa maneira, e agredindo nossa mais profunda
natureza (que, segundo essas pessoas e a sociedade de conjunto, é a
"natureza humana", a monogamia).
Mas isso é um passo à frente. Existem pessoas que negam que
ao menos estejamos de fato praticando poliamor; afirmam que estamos apenas
usando um "termo bonito" para esconder que na verdade não queríamos
"nada sério", estamos atrás apenas de sexo, "putaria", etc.
Essas pessoas negam a realidade, fogem de admitir o fato de que nos envolvemos
afetivamente com nossxs parceirxs. Para elas é inconcebível uma relação real
que não seja monogâmica. Para essas pessoas relacionamento e monogamia são
sinônimos (ou, pelo menos, os relacionamentos sérios). E, de fato, a sociedade
de conjunto trata monogamia e relacionamento como sinônimos.
Em quase todos os filmes e produtos midiáticos em geral,
relacionamento e monogamia são dois nomes da mesma coisa. Poucos são os que
admitem a possibilidade real de se apaixonar por duas pessoas ao mesmo tempo -
e, mesmo nesses produtos, geralmente há uma escolha por um dos dois parceiros
românticos possíveis, mesmo que no meio do caminho haja envolvimento com os
dois ao mesmo tempo (o que é sempre visto como uma traição, uma transgressão,
algo ruim, pecaminoso, que tem que ser resolvido, mesmo que ninguém tenha em
momento algum dito que as relações eram monogâmicas. Parte-se do pressuposto de
que relação é igual a monogamia). O final feliz é sempre a dois. O final triste
é sempre a um.
Por causa disso, também, muitas pessoas associam poliamor (e
não-monogamia, em geral) a traição. Se achar que poliamor não existe já é ver
como uma coisa "menor", "sem valor"; essa postura é, no
entanto, ainda mais agressiva. Trata-se como se fosse uma desonestidade dx poli
viver uma relação assim. Meu caso explicita bem isso: inconformada com o fato
de eu estar duas mulheres no mesmo ambiente, minha mãe se aproveitou da minha
ausência para dizer a elas que elas "não precisavam passar por isso",
como se fosse alguma forma de humilhação, como se eu as estivesse traindo
"na cara delas". Ou seja, minha mãe partiu para uma ação concreta que
buscava desmoralizar a mim e sabotar meus relacionamentos. Para minha sorte,
nenhuma delas tinha dúvidas ou estava " experimentando" - eram ambas
polis convictas. Mas esse caso é sintomático de como essa associação pode levar
à ação concreta das pessoas ao nosso redor em sabotar nossas relações.
Sem contar, é claro, quando estamos mal com alguma coisa da
nossa relação (principalmente quando é ciúme) e as pessoas vêm logo dizer que o
poliamor é o problema e que "na verdade" deveríamos abandonar esse
negócio de poliamor e viver uma relação fechada tradicional. O quanto temos
certeza de que queremos o poliamor não importa, pois poliamor não seria uma
relação de verdade. Isso dificulta para que possamos conseguir apoio,
compreensão e respeito para nossos problemas.
Toda forma de dizer que poliamor é outra coisa que não
poliamor chamo de apagamento polifóbico.
É perceptível, com isso, que a mono normatividade nos
pressiona o tempo todo a nos negarmos e aceitarmos estar em uma relação
monogâmica, por mais que nos sintamos nos negando fazendo isso. Isso afeta não
só o tipo de relação que escolhemos, mas o quanto de ciúmes sentimos, já que
essa pressão reforça toda a criação que tivemos que associa relacionamento como
monogamia.
Ah, e é claro, somos educados desde pequenos a ter ciúmes, a
achar que temos que disputar nossos amores com as outras pessoas, que o afeto
de outras pessoas é prejudicial para nosso relacionamento, que o amor vem em
quantidade limitada, que não-monogamia uma coisa feia e errada, que ela é
traição e que, portanto, sempre que nossos parceiros estão com alguém estamos
sendo "traídos", colocando uma carga inconsciente negativa no
poliamor mesmo que o termo nunca seja denominado.
X poliamorista é vistx como promíscux, como um predador
sexual, como alguém que quer o completo bunda-lelê e não quer nada sério. Isso
nos ataca por dois lados: de um, somos tratados como se estivéssemos sempre
"na prateleira", alguém para se transar e manter algum afeto... Até
que chegue uma relação fechada na vida do monogâmico e sejamos guardados,
esquecidos até que a relação acabe e a pessoa venha nos procurar. Isso causa um
mal estar, uma baixa na auto estima, um sentimento de rejeição, muito
grandes... Na prática, somos tratados como objetos sexuais à disposição para
quando não houver uma relação monogâmica - essa sim "séria", com
"compromisso". Por essa visão, também, é comum que monos que se
relacionam com polis nos tratem como um relacionamento menos relevante, que
funciona até que alguém outro proponha uma relação "de verdade" -
monogâmica. Aí, mesmo que tenhamos nos envolvido profundamente, somos trocados
por uma pessoa nova, com menos envolvimento, só por que a relação com aquela
pessoa seria monogâmica - e conosco não.
Por outro lado, também somos vistos como ameaças potenciais
a qualquer relacionamento (especialmente mulheres) monogâmico ao nosso redor,
como se fôssemos predadores sexuais só esperando para dar o bote, criando
situações, dando em cima, dando mole, etc. É uma clara associação com a ideia
de traição, como se todo relacionamento não monogâmico fosse, de fundo, traição
- logo, por sermos polis, somos potenciais fura-olho... Ou, em alguns casos,
possíveis amantes! Para alguns, justamente por não querermos a monogamia, não
queremos um relacionamento "de verdade" e, por isso, somos bons
"amantes", pois, conosco, não é preciso ter qualquer compromisso ou
cuidado.
Chamo esse esvaziamento do poliamor, nos tratando como seres
meramente sexuais, sem seriedade afetiva, e que se pode " botar na
prateleira", descartáveis, quase sem subjetividade afetiva, de
hipersexualização do poliamor (algo que também acontece muito com LGBTs, negros
e as mulheres que não se enquadram no perfil "pra casar").
Mas isso é apenas parte do que se passa no campo das
relações amorosas.
No campo profissional, somos mais vítimas de assédio sexual
(mulheres, principalmente, por motivos óbvios, ainda mais se forem bis), somos
tratados como pessoas menos sérias e responsáveis e, por isso, é provável que
não sejamos contratados para diversas empresas e cargos, e que não nos sejam
oferecidos projetos considerados mais sérios. Há casos também de pessoas polis
que foram demitidas quando seus chefes descobriram. Além disso, muitas vezes a
hipersexualização no local de trabalho gera uma fuga dos outros trabalhadores
de nós, com medo de que demos em cima deles, especialmente se formos homens
heteros quanto a mulheres.
A hipersexualização é obviamente muito mais forte quando
combinada com outras opressões, como o racismo e a LGBTfobia, por exemplo. Um
homem negro ou mulher negra (essa mais que aquele) que seja poli vai ser vistx
de maneira hiper sexualizada ainda mais que um homem ou mulher brancxs,
aumentando as chances de abuso emocional e de assédio sexual.
Em termos de direitos trabalhistas e sociais é que a coisa
fica ainda mais séria. Polis só podem oferecer seus direitos de casamento ou
união estável a uma única pessoa das quais se envolve. Logo, uma grande
quantidade de polis fica descoberto em caso de morte de uma parceirx, no caso
de nascimento de uma criança, no caso de separação... E os filhos de um trial
só poderão herdar algo de um dos pais/mães... Ainda somos discriminados para
adoção de crianças e doação de sangue, também, por exemplo.
Em diversos ambientes somos forçados a esconder nossa
Identidade, como na família e em escolas.
É visto com tremenda inaceitação irem duas pessoas no dia
dos pais ou das mães das escolas (ou irem três ou mais pessoas para uma reunião
de pais), professores polis são considerados "maus exemplos", e toda
escola ensina a família monogâmica como natural. Não há qualquer preocupação
com evitar o bullying que uma criança de família poli pode sofrer na escola
caso a identidade de seus pais seja exposta.
Na família a coisa é ainda mais grave. A maioria esmagadora
dos polis não pode levar mais de umx parceirx para reuniões de família, apresentá-los às famílias (ainda que sejam em situações diferentes), ou levá-los para casa quando não moram sós.
Muitas pessoas perdem a guarda de filhos (com apoio dos próprios familiares)
por serem polis (tratados como " instáveis", "imaturos",
" imorais", "irresponsáveis"). Algumas pessoas perdem o
contato com a família ao saírem do armário, muitos sofrem violência física,
psicológica e até sexual (especialmente mulheres) por causa disso. Muitos pais
se utilizam de seu poder financeiro sobre os filhos mais jovens ou em
dificuldades para combater sua orientação poli.
Aliás, o caso da violência sexual é emblemático. Se
mulheres, em geral, são vistas como causadoras dos estupros que sofrem por
causa de roupas ou atitudes, a mulher poli não precisa de nenhuma
justificativa: o estupro é justificado por que, na cabeça deles, ela " dá
para qualquer um" ou "fica dando mole". Até mesmo a não-consensualidade do ato é posta em questão sob o argumento de que ela é
poli. Claro que o drama do estupro e todos esses elementos acontecem com
mulheres monogâmicas, mas no caso das polis isso é mais acentuado.
Para moradores de favelas a polifobia é ainda mais acentuada
por causa da intensa vigilância social e o convívio espacial apertado.
Todas as religiões monoteístas são contra o poliamor e
muitos membros de religiões pagãs e afro, mesmo não tendo nenhum dogma referente
a uma monogamia ou poligamia masculina, expressam polifobia na forma de "
mensagens do além", que reproduzem todo o discurso polifóbico e muitas
vezes tentam trazer o poli de volta à monogamia - o que é especialmente danoso
para aquele que crê nessas "mensagens".
Além disso tudo, algumas ofenças específicas de gênero
ocorrem de maneira alastrada. O homem tem a vantagem de poder ser visto, num
primeiro momento, como polígamo e não como poliamorista, o que pode lhe
conceder o status de " pegador" (um privilégio que homens homo ou trans não
possuem, por exemplo). Mas isso cai por terra quando é sua parceira (ou
parceiro) quem está se relacionando com outro homem - ele cai do status de
"pegador" para "corno", " corno manso", que é
algo extremamente desmoralizante para um homem. No caso das mulheres é ainda
pior, pois são taxadas de "putas", " fáceis", logo de
primeira. Quando são bis, são vistas como um menage ambulante, às vezes até por
homens poli reproduzindo essa combinação de polifobia com machismo.
Mesmo no meio não-monogâmico estamos sujeitos a sofrer
polifobia. É comum que pessoas que vivem relacionamentos polis não queiram se
denominar polis (por vários motivos, especialmente por não quererem aceitar o
poliamor como modelo viável de relação), o que é uma forma de reproduzir o
apagamento. Além disso, é comum também que casais swingers e RA usem polis
(especialmente mulheres bis) como um tempero sexual na relação deles, ignorando
totalmente os sentimentos dos polis, incorrendo em hipersexualização.
Existem outras expressões de polifobia que eu posso não ter
lembrado ou sobre as quais posso ainda não ter pensado. Esse não é um texto
final sobre o assunto. Todos devemos pensar sobre isso e elaborar formas de lidar. Se você pensou em alguma coisa ou passou por alguma situação que eu
não tenha citado, por favor, comente o post falando disso, OK? Ou envie um
email para mim com suas observações.
Se você acha que este texto é exagerado ou que fala de
coisas que não existem ou que são outra coisa e não polifobia, talvez você deva
rever seus conceitos e aceitar a vivência que você não tem.
No próximo texto tratarei de como a polifobia pode ser
combatida.
Vontade e Sabedoria na Guerra!
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