quarta-feira, 25 de março de 2015

Mitologia Contemporânea: O indivíduo

Muito se fala hoje (na verdade, desde o século XVIII) sobre o indivíduo... e existe um certo louvor quando se fala do indivíduo, liberdade individual, interesse individual, gostos individuais... e por aí vai... Mas pouca gente usa essa palavra sabendo o que exatamente ela quer dizer e, muito menos, as implicações de usá-la. Isso geralmente tem a ver com um monte de mitos que envolvem esse tipo de concepção (como a maioria dos conceitos que as pessoas usam por aí).



Primeira coisa que é legal de colocar na mesa é que o conceito de indivíduo é um conceito essencialmente coletivista. É, bizarro, eu sei. Mas a idéia de indivíduo advém da abstração das particularidades das pessoas, ou seja, de pensar as pessoas apesar de suas diferenças, vendo aquilo que seria a "essência" comum a todos os seres humanos: o indivíduo. Ou seja, quando falamos de indivíduos, não estamos pensando em algo que se refere às pessoas reais e concretas, mas a uma abstração das pessoas reais e a criação de um personagem ideal, sem história, sem características particulares... um mito.

Se por um lado essa idéia é totalmente irreal, ela é que permitiu a emergência de uma concepção sobre coisas que todo ser humano merece, o que todo ser humano precisa para viver... ou seja, está na base dos direitos humanos - existiria algo de essencial, que existe, que é real, e que independe de quem você é, de quem você nasceu, do que você faz ou do que você viveu.


Os direitos humanos surgem, portanto, como negação da idéia feudal de que as pessoas nada mais são que pedaços do grupo de que advém (camponês, eslavo, católico, etc.). Antes, ninguém era portador de direitos essenciais universais. Os direitos eram determinados por grupo de nascimento - ou seja, não importava o que você tivesse feito na vida.

Mas se o indivíduo é um figura inventada a partir da negação de toda especificidade, e é a localização de uma abstração de "humano" fora da realidade concreta... ele simplesmente não existe.

Mas vamos além disso...

A concepção mais usada de indivíduo é a concepção liberal, fundada pelo iluminismo, principalmente com Adam Smith. Mas ok, não vou ficar aqui em academicismos. Pesquise.

O fato é que essa idéia - de que todos os seres humanos têm algo de essencial que é igual não importa quem seja - veio com algumas concepções de o que seria esse algo essencial; afinal, não faria nenhum sentido dizer que todo ser humano tem algo de igual apesar das diferenças se não se dissesse o que é essa coisa.

Pois bem, aí começa a inversão... Os liberais não partiram dos humanos concretos em uma condição de indivíduos para pensar seu conceito do que seria essa "essência humana" (que em muitos casos virou a idéia de uma "natureza humana", um conceito ultrapassado pela ciência social), mas sim, fizeram o caminho inverso. Partiram de uma suposta "condição essencial" de indivíduo para pensar o ser humano concreto.

O que isso quer dizer? Então, eles pensaram "bom, se existe algo de comum a todos os seres humanos, vamos pensar como essa coisa abstrata funciona e depois vamos aplicar isso aos seres humanos reais". Ou seja, imaginaram um humano abstrato, como se ele fosse anterior aos humanos concretos, como se nós nascêssemos indivíduos isolados, conscientes, racionais e abstratos e depois fôssemos confrontados com outros indivíduos. As leis, a moral, os costumes, a política, a economia... tudo surgiria daí.

O problema dessa lógica é que se parte de um ser humano adulto isolado, sem história, sem vivências, sem relações com qualquer outro indivíduo, e, ao mesmo tempo, absolutamente racional... e esse ser humano simplesmente nunca existiu nem existirá.

Nenhum ser humano recém-nascido sobrevive isolado. Existe um experimento feito por um nobre feudal que prova que seres humanos atendidos em todas as suas necessidades físicas, mas sem contato humano complexo (inclusive afetivo), literalmente morrem. É, morrem. Morrem mesmo, não é figura de linguagem. Geralmente em meses, raramente mais de um ano. Quando um ser humano é posto em contato complexo com animais, eles tendem a reproduzir o comportamento desses animais. Ou seja, não existe ser humano sem relação com outros seres, que não tenha aprendido nada de ninguém, que não exista em coletividade.

Pior ainda é conceber que esse ser humano seria plenamente racional e consciente de suas vontades! Estatisticamente, as pessoas emocionais são a maioria esmagadora da população e uma minoria ínfima tem características psicológicas que as levariam a ter a capacidade de se distanciar, de maneira racional, do que lhe foi ensinado. Logo, além de não existir a total independência racional do indivíduo liberal, mesmo que tentemos pensar que as pessoas podem escolher as coisas e se tornar indivíduos liberais após crescerem, teremos também uma fantasia - mesmo para romper com o que foi ensinado e reavaliar racionalmente, é preciso ser um dos poucos com essa capacidade.

Pior ainda, mas mais difícil de se ver hoje em dia, é a idéia de que o ser humano é naturalmente egoísta. Isso parte da idéia de que o ser humano existe como indivíduo livre, sem nenhuma conexão com qualquer pessoa, sem nenhuma crença, nenhuma exigência social... e que ele simplesmente se depara com a existência de outros indivíduos (iguais a ele). Por ser racional, ele identifica a sua igualdade fundamental com todos os outros, e, para garantir seus interesses, estabelece leis e acordos. Por ele vir de nada e não ter nenhuma ligação que o obrigue a nada, ou que o incline a nada, apenas o seu raciocínio o permite que ele desenvolva interesses, objetivos, particulares. Eles, naturalmente, se confrontam com o fato de que os outros indivíduos também estão assim. Como não há emoção, amor, conexão, cada indivíduo busca egoisticamente seu próprio interesse segundo sua própria razão e, por isso, estabelece conexões que sirvam ao seu interesse egoísta.

Bom, se falamos de um ser humano sem conexões, falamos de um ser humano sem sociedade, ou seja, um ser humano imaginário, que não existe. Mas vamos dar essa colher de chá e fingir que ele pode existir.

Se esse ser humano tem interesses... de onde eles viriam? que interesses seriam esses? como ele poderia ter elaborado esses interesses? É simplesmente impossível. Para pressupôr que ele teria interesses, temos que abdicar da abstração do indivíduo liberal e pensar um ser humano real, com suas paixões, seus caprichos, seu amor, sua família, seus amigos, seu ideais e valores criados durante sua formação... Mas não entra aí uma contradição? Como pode ele ser um ser humano concreto, com emoções, laços, relações sociais... se estamos pensando justamente na formação dos laços humanos do ponto de vista de um ser humano totalmente livre e racional? A fantasia perde o sentido quando confrontada com sua própria incompletude.. e tem que procurar na realidade alguma solidez. Mas para isso, ela precisa sair da própria fantasia... ou seja, para se afirmar, precisa se negar.

De qualquer forma, por que o indivíduo iria buscar naturalmente objetivos egoístas? Por que ele iria atrás somente de seus próprios interesses? Se ele é racional e se vê interagindo com outros indivíduos, ele não poderia ter empatia por outros seres humanos e tentar ajudá-los em seus próprios objetivos se isso não o prejudicasse? Por que ele não poderia criar laços verdadeiros com outros seres humanos? Presumir que esse indivíduo mitológico fosse necessariamente agir de maneira egoísta é reduzir o ser humano a uma de suas possibilidades de comportamento. E aqui se revela a realidade social por trás do próprio conceito de indivíduo: ele serve para justificar uma sociedade egoísta, uma cultura egoísta, fazendo o que várias sociedades fizeram com diversos outros comportamentos fundamentais para seu funcionamento - convenceram a todos que ele era "natural"; o que é simplesmente uma mentira.

(Aliás, segundo vários estudos, esse comportamento naturalmente egoísta e racional só existe em psicopatas. E, por isso, não é à toa que eles costumam se sair bem em nossa sociedade. Ou seja, nossa sociedade não foi concebida com seres humanos normais, mas para psicopatas)

Existe uma coisa interessante a se pensar sobre a liberdade desse ponto de vista. A idéia comum - de que a liberdade do indivíduo é agir segundo seus desejos e vontades, e que a única restrição moral/legal a isso seria a liberdade do outro indivíduo de fazer o mesmo - vem desse conceito de indivíduo que já demonstrei ser falso. Por quê?

Lembram-se de que o indivíduo isolado, egoísta e racional se encontra com outros indivíduos também isolados, egoístas e racionais e aí então cria as leis e a moral? Pois é, se antes disso ele era isolado e egoísta, ele simplesmente fazia o que queria (o que é contraditório com ser racional, ou buscar seus interesses, já que fazer o que se quer num momento pode ir contra o que se quer para futuro) e não existia nada que o dissesse que não, não havia interdição (o que é simplesmente ainda mais fantasioso, já que existe uma realidade ao redor dele que o impõe limitações) - ele era como um Deus caprichoso de si mesmo e do mundo ao seu redor. Isso só para quando ele se depara com outros indivíduos que também são seus próprios Deuses e quanto aos quais não tem nenhum poder. Em igualdade de poder e de vontade, então, esses indivíduos míticos criam leis que permitem que eles façam o que querem, mas que isso não impeça os outros de fazerem o que querem também. Ou seja, a sua liberdade acaba onde começa a do outro.

Essa fábula completamente esdrúxula falha em explicar de onde vêm essas vontades individuais (além das necessidades básicas humanas, o que mais um ser humano isolado poderia procurar que fosse diferente de outros indivíduos? onde fica a especificidade? de onde ela surge?) e falha em considerar o fato de que tudo que existe no universo é limitado por algo, a própria realidade. Se não somos capazes de simplesmente fazermos o que queremos o tempo todo, como um ser racional poderia querer fazer o que quer o tempo todo? Só se ele fosse um completo idiota.

E se a vontade do outro não for antagônica com a sua, por que ela seria limitada pela liberdade do outro? Se o outro for influenciado positivamente pelo que acontece de bom para outros indivíduos, por que a liberdade dele pararia na do outro? Elas não seria complementares ao invés de antagônicas? Só é possível conceber que toda liberdade é antagônica à do outro se pensarmos em indivíduos isolados, sem laços, em constante conflito de interesses inconciliáveis. Essa fantasia liberal simplesmente não existe, não passa de uma figura imaginária sem base na realidade.

Quer dizer, até tem alguma base na realidade, já que o capitalismo nos impõe o sucesso solitário e competitivo, impondo que nós naturalizemos a idéia de que o sucesso dos outros nega o nosso e que precisamos afirmar nossas vontades contra as dos outros... mas aí isso entra em contradição com a idéia de que a sua liberdade acaba onde começa a do outro... por que um indivíduo isolado, egoísta e racional procuraria uma situação de igualdade se ele pode simplesmente arrumar formas de passar por cima dos outros?

Essa idéia de indivíduo também é a base da meritocracia, que ignora as especificidades, e da concepção de história feita pelos grandes personagens históricos, que, sem qualquer conexão, apenas usando se suas capacidades individuais e seu intelecto, foram capazes de transformar todo o curso da história de um povo... uma fantasia.

Isso tudo quer dizer que devemos jogar o conceito de indivíduo no lixo? Se sim, o que botar no lugar?

Acho que o conceito de indivíduo, se afastado da lógica liberal, tem sim um valor importante. Cada vez mais, aliás, um conceito alternativo de indivíduo vem alcançando as posturas das pessoas sem que elas percebam. Existe um novo individualismo emergindo. E existe outra forma de conceber o indivíduo.

Se partimos do pressuposto que gerou a idéia de indivíduo no início, podemos chegar a diferentes conclusões. Abstraindo as especificidades dos seres humanos, não precisamos chegar ao indivíduo isolado. Pelo contrário, se estivermos comprometidos com a realidade, vamos perceber que todo indivíduo nasce de uma rede de relações e que é formado de maneira específica e única por elas. Que ele cresce e desenvolve seu intelecto tendo como base as relações e experiências que o criaram, e que ele sempre existe em relação com outros indivíduos.


Se for assim, os direitos humanos são uma necessidade e as liberdades não são contraditórias, mas têm o potencial de serem complementares, já que é delas que emerge o indivíduo em sua constante transformação de algo em outra coisa. Ser egoísta, nessa concepção, é possível, mas não é necessário nem desejável, já que ver as coisas do ponto de vista do indivíduo é ver do ponto das relações.

Em outra ocasião dou mais atenção a essa alternativa de pensamento do indivíduo. Por agora, fiquem com o pensamento. E deixo aqui o questionamento: que formas de agir e pensar que você carrega estão baseadas, no fundo, mesmo que vc não saiba, nessa concepção liberal de indivíduo?


2 comentários:

  1. Uma palavra sobre liberais pra refutar o texto todo: Praxeologia.

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    1. Fabio, a praxeologia se baseia no mesmo mito do indivíduo liberal, na ideia de que ele agiria sempre em prol de objetivos determinados e conscientes, o que qualquer estudo psicológico ou antropológico prova que é mentiria. Além disso, co tinha se baseando na mesma ideia liberal de indivíduo que surge do nada. Mais ainda, sr baseia no indivíduo egoísta e, para piorar, ainda se baseia num indivíduo adulto plenamente formado, mas sem ligação com outros indivíduos. Ou seja, é totalmente fantasioso.
      Sugiro que repense o Mises, que além de ter teorias super fantasiosas e míopes sobre política, também é abertamente anti-científico. Acredito que a ciência é a forma mais aperfeiçoada que temos hoje para o estudo da realidade.

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